quinta-feira, 19 de março de 2009

Hedoné

Em homenagem a Memória.

Lembra-me o conteúdo ético da Fábula das Abelhas
do utilitário que sustenta serem o sensual e o ébrio-
dessas vantagens a economia de indivíduos e estado.

Em verdade, aconselhado como grego a ser distinto
entre ovelhas, "não ao cálculo" - disse eu.
"Nem asceta, hedonista, materialista, utilitário, ou,
o que quer que calha não valha ser menos que sou".

Se não me faz ver de outro modo, a não ser de través,
e por filtros afeita a outros motivos, isso de que afeta,
o não aparentar afeto, quanto te saís feito criança que
ninguém vê, achando-se o triste e pálido sem sorrires
é que ao certo soube que ao fazer te manietas em ser:

Quão ébria! Pensa em qualquer outra coisa quem ter
não podes... Acaso desejas, alma cínica?
Logo o cínico que nada quer, e por isso,
zomba de quem ao desejo não sacia?

terça-feira, 17 de março de 2009

A querela

Eis que no pequeno, porém vasto e pleno vilarejo escocês símile da planície que é o universo, existiam dois seres que por antipatia natural não se toleravam, e que por motivo de força maior tiveram de conviver lado a lado, e para isso tiveram que envidar os maiores esforços da suas poderosas atenções e vontade para ignorarem-se mutuamente.

Como o verão de mil oitocentos e oitenta e oito fosse demasiado voraz e abrasador além do costume, elevasse demasiado o nível do rio e ameaçasse romper a represa, que por prebenda dos recursos públicos foi construída nas coxas do prefeito da cidade mais abastada de Y. que havia oitenta metros acima de I; por amor ao vilarejo e acedendo aos clamores dos que tinham neles a maior fé que o povo simples é capaz, o guerreiro e o sacerdote que não fizeram qualquer gesto em aquiescência rumaram a pé, de cada lado e a cinqüenta metros um do outro.

Ao aportar na cidade, os forasteiros em suas roupas foram discriminados e muito orgulhosos da poeira que traziam consigo não notaram outra coisa senão a casa mais esplêndida que tomaram com êxito pela do político. O guerreiro, para que não o adivinhasse na falta de modos deixou o sacerdote seguir pela passarela até bater a porta, enquanto colhia algo na fruteira junto ao portão.

Abriu-lhe a porta a cabeleira vasta que como o crepúsculo era também a cor do fogo em seus olhos velhos como a noite, apesar de sua beleza jovial. Nada disso demoveu o jovem do seu propósito que perguntou pelo monarca.

– Caça perdizes com aristocratas na colina – com um rápido volver de olhos perguntou quem era o outro que não estava consigo, ao que ele nada respondeu.

Tornou sobre os calcanhares e foi embora sem nada dizer, o que a deixou possessa. O outro que ouvira de longe já adiantava os passos. Desse modo o guerreiro chegou primeiro ao político, alçando-o do cavalo pela lapela da japona.

– Vais dar com a fuça na represa e reza para que não estoure os teus pulmões a água!

O sacerdote tomou-o das mãos do guerreiro e inquiriu o estadista atônito.

– O que vais fazer para resolver o caso?

– Do que estais falando... – e antes que pudesse findar a dissimulação, foi alvejado pelo olhar de ambos e emendou – que podemos trabalhar nisso juntos?

Eles que tomaram aos cavalos que quiseram seguiram até a represa sem escolta. Ninguém se atreveu. Quando o político quis saber quem eram, teve o grave silêncio como resposta.

Ao chegar à represa, o guerreiro que via de longe esfregou o nariz do político seguindo o traço da fissura. O sacerdote teve a idéia de abrir dois veios como valas rio acima antes da parede, para diminuir a pressão da água, afim de que técnicos fizesse uma nova parede à frente da antiga. Como não houvesse homens fortes – disse o prefeito – os dois homens competiram calados munidos tão somente de enxada, contra a terra, daquela tarde até o dia seguinte, de modo que amanhecera o rio com dois novos braços.

A parede, naturalmente, não ficara pronta. Os técnicos ganhavam por hora. Os dois homens, enfurecidos, os despediram, porém, antes, os manietaram desumanamente. Pelo acaso da intuição compartilhada, derrubaram uma quantidade de pinheiros e com machados, tais castores acometidos de uma admirável sanha, empilharam a madeira com encaixe forjado ao fio do corte perfeito. É temerária a suposição de que se respeitassem, nunca trocaram uma palavra, e nesses dias em que cooperaram é como se estivessem em face de uma força da natureza desconhecida e contrária. Acamparam durante três dias, cada um, de um lado do rio, para verificar a obra.

Na segunda noite, por mais inverossímil para aquela época e na região dos prados, desabou o céu em uma tempestade tamanha que não se podiam abrir os olhos sem que semelhassem submersos num barril. Era o teste final. Estiveram atentos ao menor ruído que viesse da barragem. O que não houve. Um esquilo que tentou atravessar o caminho pela parede caiu na água, foi salvo pelo guerreiro.

Como se espalhasse pelo mundo notícia do grande feito, na manhã do terceiro dia de acampamento subiu até a barragem toda a gente da cidade grande e do vilarejo, mui gratos e orgulhosos de seus maiores cidadãos.

O político tomou a dianteira. Alcançou ao sacerdote e foi ignorado. Virou-se para o guerreiro que rosnou o que lhe comeu toda a coragem. Mesmo assim fez o seu discurso. Estava verdadeiramente grato pelo corte nas despesas. A sua mulher, acometida pela admiração e ainda ferida em sua vaidade, prometeu trazer-lhes todo o tipo de manjares, o que fez, assim que a multidão se dispersou.

Eles, extenuados e famintos pela exígua quantidade de caça, não puderam recusar. Até parecia uma ceia. Ela percebia na indiferença recíproca uma rivalidade latente. Quis tomar partido disso. Inclinava-se para ambos, sofisticada e com premeditação. Os glutões, apesar de não comer o que o outro havia tocado, haviam limpado a mesa, digo, o lençol estendido na relva.

Fala a carne quando o trabalho cessa. Finda a empresa que os unira cada um voltou para os seus afazeres. Um grande feito esquecido é a premissa para que um feito maior instaure a novidade. O guerreiro, naqueles tempos de paz sem sal aprofundava no ócio alternado-o com exercícios.

O sacerdote tinha muitos fiéis da reformada fé para ouvir e muito se orgulhava de serem os problemas dos seus diversos dos problemas dos católicos. Certa tarde verificou que a última pessoa que viera se aconselhar era a esposa do prefeito. Ele não quis saber o porquê da visita ter escolhido seus préstimos nem do conteúdo das questões que lhe fazia como que por enigmas. Ela passou a freqüentar-lhe todas as tardes. O sacerdote, que não havia contraído matrimônio, se viu na situação embaraçosa de julgarem-no amante da mulher que todas as tardes esperava ser a última apenas para adentrar a noite consigo.

– Sou um sujeito razoavelmente sozinho, apesar de todo o meu rebanho. A senhora tem feito questão de ser muito amável e tem se insinuado de muitas maneiras. O que quer?

Sem romantismo, meu querido.

– Pelo seu caráter não deseja viver com um humilde servo como eu. É demasiado apegada ao luxo e a títulos. Não deseja ser minha amiga, isso se vê nos seus olhos e nos seus movimentos. A senhora tem lá os seus encantos. Ainda que em virtude de uma dúvida não a queira de nenhum modo. Um amante não seria eu. Volte para o seu marido, ou se perca três quarteirões mais à frente com um outro que tu desejes.

O longo período em que o escutou foi o suficiente para feri-la no âmago de sua vaidade e orgulho. Mal da quase totalidade das mulheres que são ditas belas. As fibras de seu ser obsessivo causavam abalos na realidade circunstante. Ele ignorava o poder das mulheres em fúria feridas. Foi tangendo-a porta afora sem a tocar. Ela volveu um olhar de ódio, quando ele quase a quis, e chegou a tocar-lhe a cintura. Ela perguntou o que era aquilo da maneira mais simulada. Ele levantou as mãos, e se concedeu indulgência tão somente por ser homem.

Ela lhe jurou vingança na base do “poder” que seu marido tinha. O prefeito, de fato, não tinha nenhum que fosse seu, e por isso fora enganado mui facilmente e manobrado de modo a servir nas mãos de títere, moveu-lhe um processo criminal e uma campanha de difamação, que ainda que desse com os burros n´água, foi para o sacerdote como uma gota que rompesse o copo.

O político não fez como o costume: desafiar o suposto amante de sua mulher para um duelo. A verdade costumava aparecer assim diante os outros, através daquela instituição que até então era permitida em Escócia.

O sacerdote era um homem público e não pode tolerar a covardia. Subiu a estrada a pé munido apenas de seu punhal.

– Vou matá-la – disse ao aportar em praça pública da grande cidade.

Deu dois passos e deparou-se com o prefeito que investia atrás das costas do guerreiro com um punhal. Não permitiria que seu rival fosse assassinado. De fato ele não o seria.

[...] Interpus-me entre os dois, segurei-lhe a mão que portava o punhal, esbarrei no guerreiro, Fehnrir é o seu nome, e ele que já se voltava para conter o golpe do assassino, não poderia me perdoar sequer o esbarrão, muito menos o fato de o ter julgado incapaz de se defender sozinho de uma lesma, assim ele pensou. E ali, iniciamos uma batalha terrível, às mãos limpas em punho fechado, em equilíbrio perpétuo e que não teria fim, se a cidade em polvorosa não gritasse o assassinato da beldade e viesse buscar o suposto assassino, por um lapso de tempo no contínuo da memória popular e pela persistência das ameaças de morte proferidas no calor da paixão.

Ainda que o virtuoso guerreiro e eu resistíssemos com duras penas à carga dos trinta soldados desarmados em virtude dos gritos do político que por força de um clichê nos queria vivos, porque já não conseguiam se levantar e tivéssemos apenas começado a suar, como a decisão agora fosse nos matar a qualquer custo, decidimos que não valeria a pena morrer pelas mãos daqueles soldados sem perícia com armas e por uma falsa acusação que nos mancharia de criminoso e cúmplice na falível e trágica memória que timbrasse a folha do obituário.

Fomos postos a ferros em uma espécie de calabouço medieval. Se não fosse rápido em querer-nos despachar, a coisa já dera ocasião aos boatos, o que somente uma execução pública os poderiam encobrir, teríamos nos desvencilhado dos grilhões. As paredes da prisão então não nos deteriam. Por motivo de economia seríamos julgados e executados juntos.

Oisin

Quando, ó artista desconhecido,

tuas faltas irão soar & nas tristes

harpas de outrora espiar teu crime?

Que brisa suave & leve te não imporá

o peso grave dessa música intolerável?

Poderá ela deixar de falar ao meu ouvido?

Desde o crepúsculo a morte espreita como sombra

de través atrás de tua alma pertinaz.

Poderia eu esquecer o torno de luz,

branca cabeleira coroada, irmã do rei?

Vai, filho de teu pai, tuas palavras

são como o vento para mim.

Vento que se dirige aos tristes

vales do outono cinzento.

Habitante do mar, navio de velas,

são asas de batalha...

Descuida o curso do meteoro

destinado a te afundar.

Como negras nuvens que rolam no céu,

atrás de mim, as crianças dos heróis

deixadas para trás, clamam de saudade

pela terra desconhecida, os vales ínferos da morte.

Cada olhar contém seu escudo acostumado a batalhas.

[Cada olhar é como um escudo cansado de batalhas].

Venha a mim, ó tu, que habita entre as harpas.

Tu que salta pelas cordas afora,

faz perder a terra aos meus pés.

Não há palavras que te valham,

elas que apenas afiam em pedras suas pontas.

Cada alma está enrolada em si mesma

como pergaminho em língua antiga.

Ao menos o surdo clangor está a nu e desperto

nos teus olhos, em todos os seus ecoantes escudos.

Cada olho toma seus rios pela noite,

nos seus intervalos a escuridão para.

Desiguais queimam os rumores das canções

sem o fumo através dos desquitados ventos.

Brada sobre o rosáceo da lua.

No seu manto brilha o sol, seu parceiro inolvidável.

Ao pé do rio há o vale com suas árvores ecoantes.

Diga a ele: desde aurora está aqui o pai da alegria.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Hades

Já vivi muitas situações de morte
quando em vida morri muitas vezes.
Sinto na velha acústica dos meses
o reverbério rústico da sorte.

Quando na alma a ânsia agoniza
e o fogo fátuo do desejo atiça
e sinto o gosto acre que da cortiça
do vinho ao átrio das veias agiliza.

No olhar o encontro de efemérides.
Aroma no ar dos pálidos mananciais.
Do tapete sólido que aos velos irdes,

distinguirás as bençãos se infernais,
mistura carnes no mistério do mais,
aos vícios e virtudes de tuas tardes?

domingo, 1 de março de 2009

Escarpa

Do pó ao pó...