quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Vaidade

Era preciso concordar com Anaxágoras para que aquele café fosse capaz de aplacar-lhe a sede. A água fervia enquanto revisitava o antigo cânion de sua infância, e o suor da terra fez lembrar o seu. A idéia de que seu corpo fosse o mero coador alquímico da natureza não tinha o apelo capaz de testemunhar contra sua vaidade. Afinal a imaginação de que se gabam os escritores é apanágio da inteligência que no homem dá as mãos à estultícia. Não ousava tomar o café que lhe preparavam. Por ciúme a imagens perenes postou como testemunhas perfeitas sangue, suor e lágrima a ama inexaurível. Apenas o que não tem forma é capaz de reter o sentimento dos entes enquanto jorram. Aquele instante da sua adolescência que, enquanto fase da vida, pode não ter valor algum, foi o divisor de águas. Até então a Morte não o tinha tocado senão como a todos, como um temor frívolo. Exultava na tolice que é sorrir de pedras, plantas e insetos e regurgitar numa inteligência particular. O orgulho herético faz espumar a boca na falta de saliva, assim como cuspir no outro já foi arma de retórica. Eis que o ávido veículo do Rajá dos sentidos rugiu. Rígido, sua orelha em concha captou o sibilante e estridente recurso do pássaro a que os homens chamam gavião. A rajada do vento o envolveu enquanto céu e terra embranqueceram engolfados na anestesia da carne. Estremeceu antes do golpe. A queda foi para ele um deslocamento incorpóreo. Não é o chão um travesseiro de ossos? Por instantes sua atenção foi o eco e ouvir sem ver é como descrevem os fantasmas. Aí Ela teve para com ele um gesto. Chamou a habitá-La. Ela que se escondera nele queria retribuir. Ele desejou-a. Ela que vestiu o mundo. O corpo ávido respondeu por si, ainda é cedo amor. Ela tal uma direção vem do Oeste como o vento frio da tarde. A sua presença espreita pela esquerda, esquiva como nossa sombra por inteiro, regular como nossos hábitos. Formidável encontro. Seu vislumbre abrasador foi o bastante para abrir uma clareira na floresta tenebrosa do amor próprio, a mesquinhez enorme que ele leva dentro. Agradeceu o eloqüente movimento da força impessoal que porta a inflexível intenção. Soube que há uma instituição em que a corrupção é impossível. A partir de então aquele cotidiano arbusto espinhoso tornou-se para ele quase agradável.

2 comentários:

Gabriela Adloff disse...

Vaidade de vaidades, tudo é vaidade.

A primeira estrela disse...

Vaidade é um assunto muito delicado.