terça-feira, 17 de março de 2009

A querela

Eis que no pequeno, porém vasto e pleno vilarejo escocês símile da planície que é o universo, existiam dois seres que por antipatia natural não se toleravam, e que por motivo de força maior tiveram de conviver lado a lado, e para isso tiveram que envidar os maiores esforços da suas poderosas atenções e vontade para ignorarem-se mutuamente.

Como o verão de mil oitocentos e oitenta e oito fosse demasiado voraz e abrasador além do costume, elevasse demasiado o nível do rio e ameaçasse romper a represa, que por prebenda dos recursos públicos foi construída nas coxas do prefeito da cidade mais abastada de Y. que havia oitenta metros acima de I; por amor ao vilarejo e acedendo aos clamores dos que tinham neles a maior fé que o povo simples é capaz, o guerreiro e o sacerdote que não fizeram qualquer gesto em aquiescência rumaram a pé, de cada lado e a cinqüenta metros um do outro.

Ao aportar na cidade, os forasteiros em suas roupas foram discriminados e muito orgulhosos da poeira que traziam consigo não notaram outra coisa senão a casa mais esplêndida que tomaram com êxito pela do político. O guerreiro, para que não o adivinhasse na falta de modos deixou o sacerdote seguir pela passarela até bater a porta, enquanto colhia algo na fruteira junto ao portão.

Abriu-lhe a porta a cabeleira vasta que como o crepúsculo era também a cor do fogo em seus olhos velhos como a noite, apesar de sua beleza jovial. Nada disso demoveu o jovem do seu propósito que perguntou pelo monarca.

– Caça perdizes com aristocratas na colina – com um rápido volver de olhos perguntou quem era o outro que não estava consigo, ao que ele nada respondeu.

Tornou sobre os calcanhares e foi embora sem nada dizer, o que a deixou possessa. O outro que ouvira de longe já adiantava os passos. Desse modo o guerreiro chegou primeiro ao político, alçando-o do cavalo pela lapela da japona.

– Vais dar com a fuça na represa e reza para que não estoure os teus pulmões a água!

O sacerdote tomou-o das mãos do guerreiro e inquiriu o estadista atônito.

– O que vais fazer para resolver o caso?

– Do que estais falando... – e antes que pudesse findar a dissimulação, foi alvejado pelo olhar de ambos e emendou – que podemos trabalhar nisso juntos?

Eles que tomaram aos cavalos que quiseram seguiram até a represa sem escolta. Ninguém se atreveu. Quando o político quis saber quem eram, teve o grave silêncio como resposta.

Ao chegar à represa, o guerreiro que via de longe esfregou o nariz do político seguindo o traço da fissura. O sacerdote teve a idéia de abrir dois veios como valas rio acima antes da parede, para diminuir a pressão da água, afim de que técnicos fizesse uma nova parede à frente da antiga. Como não houvesse homens fortes – disse o prefeito – os dois homens competiram calados munidos tão somente de enxada, contra a terra, daquela tarde até o dia seguinte, de modo que amanhecera o rio com dois novos braços.

A parede, naturalmente, não ficara pronta. Os técnicos ganhavam por hora. Os dois homens, enfurecidos, os despediram, porém, antes, os manietaram desumanamente. Pelo acaso da intuição compartilhada, derrubaram uma quantidade de pinheiros e com machados, tais castores acometidos de uma admirável sanha, empilharam a madeira com encaixe forjado ao fio do corte perfeito. É temerária a suposição de que se respeitassem, nunca trocaram uma palavra, e nesses dias em que cooperaram é como se estivessem em face de uma força da natureza desconhecida e contrária. Acamparam durante três dias, cada um, de um lado do rio, para verificar a obra.

Na segunda noite, por mais inverossímil para aquela época e na região dos prados, desabou o céu em uma tempestade tamanha que não se podiam abrir os olhos sem que semelhassem submersos num barril. Era o teste final. Estiveram atentos ao menor ruído que viesse da barragem. O que não houve. Um esquilo que tentou atravessar o caminho pela parede caiu na água, foi salvo pelo guerreiro.

Como se espalhasse pelo mundo notícia do grande feito, na manhã do terceiro dia de acampamento subiu até a barragem toda a gente da cidade grande e do vilarejo, mui gratos e orgulhosos de seus maiores cidadãos.

O político tomou a dianteira. Alcançou ao sacerdote e foi ignorado. Virou-se para o guerreiro que rosnou o que lhe comeu toda a coragem. Mesmo assim fez o seu discurso. Estava verdadeiramente grato pelo corte nas despesas. A sua mulher, acometida pela admiração e ainda ferida em sua vaidade, prometeu trazer-lhes todo o tipo de manjares, o que fez, assim que a multidão se dispersou.

Eles, extenuados e famintos pela exígua quantidade de caça, não puderam recusar. Até parecia uma ceia. Ela percebia na indiferença recíproca uma rivalidade latente. Quis tomar partido disso. Inclinava-se para ambos, sofisticada e com premeditação. Os glutões, apesar de não comer o que o outro havia tocado, haviam limpado a mesa, digo, o lençol estendido na relva.

Fala a carne quando o trabalho cessa. Finda a empresa que os unira cada um voltou para os seus afazeres. Um grande feito esquecido é a premissa para que um feito maior instaure a novidade. O guerreiro, naqueles tempos de paz sem sal aprofundava no ócio alternado-o com exercícios.

O sacerdote tinha muitos fiéis da reformada fé para ouvir e muito se orgulhava de serem os problemas dos seus diversos dos problemas dos católicos. Certa tarde verificou que a última pessoa que viera se aconselhar era a esposa do prefeito. Ele não quis saber o porquê da visita ter escolhido seus préstimos nem do conteúdo das questões que lhe fazia como que por enigmas. Ela passou a freqüentar-lhe todas as tardes. O sacerdote, que não havia contraído matrimônio, se viu na situação embaraçosa de julgarem-no amante da mulher que todas as tardes esperava ser a última apenas para adentrar a noite consigo.

– Sou um sujeito razoavelmente sozinho, apesar de todo o meu rebanho. A senhora tem feito questão de ser muito amável e tem se insinuado de muitas maneiras. O que quer?

Sem romantismo, meu querido.

– Pelo seu caráter não deseja viver com um humilde servo como eu. É demasiado apegada ao luxo e a títulos. Não deseja ser minha amiga, isso se vê nos seus olhos e nos seus movimentos. A senhora tem lá os seus encantos. Ainda que em virtude de uma dúvida não a queira de nenhum modo. Um amante não seria eu. Volte para o seu marido, ou se perca três quarteirões mais à frente com um outro que tu desejes.

O longo período em que o escutou foi o suficiente para feri-la no âmago de sua vaidade e orgulho. Mal da quase totalidade das mulheres que são ditas belas. As fibras de seu ser obsessivo causavam abalos na realidade circunstante. Ele ignorava o poder das mulheres em fúria feridas. Foi tangendo-a porta afora sem a tocar. Ela volveu um olhar de ódio, quando ele quase a quis, e chegou a tocar-lhe a cintura. Ela perguntou o que era aquilo da maneira mais simulada. Ele levantou as mãos, e se concedeu indulgência tão somente por ser homem.

Ela lhe jurou vingança na base do “poder” que seu marido tinha. O prefeito, de fato, não tinha nenhum que fosse seu, e por isso fora enganado mui facilmente e manobrado de modo a servir nas mãos de títere, moveu-lhe um processo criminal e uma campanha de difamação, que ainda que desse com os burros n´água, foi para o sacerdote como uma gota que rompesse o copo.

O político não fez como o costume: desafiar o suposto amante de sua mulher para um duelo. A verdade costumava aparecer assim diante os outros, através daquela instituição que até então era permitida em Escócia.

O sacerdote era um homem público e não pode tolerar a covardia. Subiu a estrada a pé munido apenas de seu punhal.

– Vou matá-la – disse ao aportar em praça pública da grande cidade.

Deu dois passos e deparou-se com o prefeito que investia atrás das costas do guerreiro com um punhal. Não permitiria que seu rival fosse assassinado. De fato ele não o seria.

[...] Interpus-me entre os dois, segurei-lhe a mão que portava o punhal, esbarrei no guerreiro, Fehnrir é o seu nome, e ele que já se voltava para conter o golpe do assassino, não poderia me perdoar sequer o esbarrão, muito menos o fato de o ter julgado incapaz de se defender sozinho de uma lesma, assim ele pensou. E ali, iniciamos uma batalha terrível, às mãos limpas em punho fechado, em equilíbrio perpétuo e que não teria fim, se a cidade em polvorosa não gritasse o assassinato da beldade e viesse buscar o suposto assassino, por um lapso de tempo no contínuo da memória popular e pela persistência das ameaças de morte proferidas no calor da paixão.

Ainda que o virtuoso guerreiro e eu resistíssemos com duras penas à carga dos trinta soldados desarmados em virtude dos gritos do político que por força de um clichê nos queria vivos, porque já não conseguiam se levantar e tivéssemos apenas começado a suar, como a decisão agora fosse nos matar a qualquer custo, decidimos que não valeria a pena morrer pelas mãos daqueles soldados sem perícia com armas e por uma falsa acusação que nos mancharia de criminoso e cúmplice na falível e trágica memória que timbrasse a folha do obituário.

Fomos postos a ferros em uma espécie de calabouço medieval. Se não fosse rápido em querer-nos despachar, a coisa já dera ocasião aos boatos, o que somente uma execução pública os poderiam encobrir, teríamos nos desvencilhado dos grilhões. As paredes da prisão então não nos deteriam. Por motivo de economia seríamos julgados e executados juntos.

Um comentário:

Hórus disse...

Em homenagem ao dia em que não choveu e as gaitas de fole não soaram.