sábado, 15 de novembro de 2008

Réquiem para meu pai III

A propósito da possibilidade de presenciar a...
e a translocação dos restos mortais de meu pai.

Após conversar amenidades é que tocamos no assunto.
Uma pergunta, porém, deixou-me aturdido.
Quando se quer que uma frase diga tudo, não me iludo.
Mesmo um colecionador de citações, deve deixar o dito,
pelo não-dito, quando a propósito da lápide, o que se pede
é a eternidade do escrito em confluência a brevidade do vivido.

A questão logo transfigurou-se em: o que de meu pai levo na alma;
Isso se deu às oito da manhã de um domingo, casa de minha avó.

Então, fui direto ao ponto: as experiências mais marcantes
antes do crepúsculo que antecede a aurora memoriosa,
assim raiou:

O teimoso pai fora aplacado pelo peso da medicação.
A insuficiência hepática (uma das causae mortis)
não lhe permitira depurar os efeitos nocivos da droga,
pois todo remédio para algo torna-se veneno para o todo.

Assim entrara em coma.
Como o soubera, foi um drama.

Bateram-me a porta figuras estranhas, femininas.
Boas notícias, desde logo, soube que não eram.
Do modo desajeitado muita dor trouxeram.
Se deuses não são, no prognóstico erram.

Desiludiram-me da possibilidade de melhora.
Pensei que era o crepúsculo, porém isso é o contexto.

Havia rendido mãe e irmã e ficara com o "moribundo",
toda a noite houvera-me impressionado a disritmia
do eletrocardiograma.

Eram planícies, planaltos do vale,
platôs e bips.

Haveria de ficar impregnado pela desarmonia
inda dois dias.

O dia iria raiar, já tentara dormia ao rés do chão frio.
Lera Platão para compensar a vaga do vazio,
mas interpretava o que lia sob um viés insano.

O dia iria raiar, e alguns movimentos lá fora,
fora do apartamento em que estava internado,
foram seguidos por algo que parecia uma melhora
no quadro que outrora me assustara:
como pode um coração assim manter-se vivo.

Enquanto dura o apego dura a vida.

O dia raiara e alguns movimentos me levaram
a examiná-lo mais de perto.

Levantei, fui bem perto, sentei-me.

Pouco depois pude ouvir um ruído de lábio contrito.
Irrompera o silêncio um grito: pedia-se a atenção dos arquétipos.

"Moça"!
Isto é, enfermeira, mãe, mulher... Nossa Senhora!?

Seguido de:
"Jesus Cristo"!
Essas coisas repetidas muitas vezes.

"Moça, meu deus,
Jesus Cristo"!

Isso quem repetia, como se mais palavras
não houvessem, era um "materialista histórico",
"dialético", supostamente irreligioso,
o que minha avó materna tomava por ateu,
pois que questionara as figuras acima ditas.
Para ele tudo era uma questão política,
ópio frente as condições materiais da existência.

Essas palavras se repetiam e de um modo insano
aos meus tímpanos feriam.

"Socorro"!
"Moça", aqui tratar-se-ia da enfermeira,
se não fosse o: "Meu deus, socorro, nossa..."

O que ele via?
O nada?

A completa falta de forma e representação?
O que são nomes? Arquétipos das coisas?

Aproximara-me hesitante.
O cheiro de morte que exalava do hálito
devia-se a falta de alimento que produz
certa enzima na falta;
a boca cortada de quem muitas vezes se mordera.

DOR!

"Pai, pai, estou aqui" - a princípio não ouvia.
"Jesus, Jesus, cadê... moça"!
"Puta que pariu, cadê a moça"?

"Pai, estou aqui... seu filho, acalme-se" - debatia-se.
Insisti muito, o processo gradual e lento do despertar
da consciência.

Com um tempo: "Chame a moça... água".
Busquei a dar-lhe, todo o seu corpo doia,
dobrar-lhe o corpo para sentar, odisséia,
o copo de plástico rangia a boca como lixa.

"Ai"!
A água no estômago vazio doia-lhe?
"Cadê a moça, tirem-me daqui" - pegou no fio do eletro,
queria arrancar.
"Deixe isso, pai", "escute-me, sou eu seu... Filho".
"Quem"?
"... Filho, mamãe irá vir, R... também, acalme-se",
"agitado assim não pode ficar" - apenas falava.
"Quem é você"?
"Seu filho, não me reconhece" - perguntei, ao que parou.
"Vá chamar alguém".
"Não há ninguém, antes das seis ninguém haverá além de mim".
"Quem é que está ai"?
"Seu filho" - caramba isso era como não ser o que sou.
"Meu filho?, meu filho?"
"Sim, pai".
"Meu filho, está aqui"? - senti-o envergonhar-se.
"Quer mais água, pai"?
"Sim, quero" - inclinei-o novamente.
"Minhas pernas doem" - disse.
Massageei-as, dobrando, a paralisia... doia.
"Meu filho, meu filho, está comigo".
"Onde está... tal"? - companheiro de quarto.
"Não há ninguém além de nós" - respondi.
...
"Meu filho, leia para mim, onde estão meus livros,
tem um consigo"? - respondi-lhe afirmativamente.
"Leia para mim, leia algo" - abri o livro a esmo (República).
Era o mito das três eras, ou das três raças... houve frisson.

A estória versa sobre a idade de ouro, idade dos deuses,
os deuses não se apercebiam dos homens, fartura e abundância...
Sucedera-lhe a idade de prata, semi-deuses,
que pela incontinência ou desmedida (hybris),
abandonaram o culto e o respeito, declínio:
a idade de bronze, era de heróis:
um Zeus, dois Prometeu, três Hércules.

Aquilo dizia muito,
noutro contexto talvez nada dissesse.

Lágrimas aos olhos, voz embargada
nas últimas linhas.

Os olhos de meu pai cegos a fitar o nada
também brilhavam.

"Filho"?
"Estou aqui, não me vês"?
"Não vejo nada, que coisa bonita".
Logo quis saber o que lhe sucedera.
Reconstituiu tudo de memória,
até o fio falhar, até uma sexta-feira,
quando lera o jornal a vez derradeira.

Era-lhe imprecindível saber a quantas
perdera o fio da consciência, repetiu,
e repetiu, havia um lapso, isso lhe oprimia,
era-lhe insuportável.

Tentei acalmá-lo, complementando-lhe
com o que pouco ou nada sabia, até que
tudo fez sentido e disse:
"Quiseram me matar".

Lembro que mês antes de falecer
ao encontramos-nos de quando em quando,
falara de sua idéia de monografia de conclusão
do curso de filosofia, tema: religião.
Problema: a concepção do deus vingativo e ciumento
no Antigo Testamento.
Pedira-me que o ajudasse.
Eu sempre absorvido em meus projetos,
ficara surpreso com aquilo, não surpreso
pelo que era um historiador.

Um mês antes, com o tio que fora o ensejo da conversa,
houvera confessado a fraqueza, entregara os pontos.
"Naquele momento ele jogou a toalha"
- confessou-me o que sentira.

Disse-me a ele que já vivera muito,
já vivera tudo o que houvera de viver,
seus filhos se encaminhavam para a vida,
haveria de levar no peito certa leveza;
a sua lucidez me insultava.

Não é que detestasse a vida e desejasse a morte,
a vida tornara-lhe um fardo pesado demais
a carregar, a morto tornara-se oblívio das dores.

Lembro de uma foto sua no calçadão de Copacabana...

Ganhar peso era sua obsessão,
pois desde a diabetes (causae mortis),
só o perdera.

A lúcida luz da morte.

Do dia em que "entregou os pontos"
até a morte contaram-se trinta dias.

Uma semana antes, bebericava
(causae mortis) escondido,
pela casa de minha avó,
madrugada a dentro,
rigor de insônia
compartilhada
por ela,
a própria personificação da natureza
que vivera para enterrar seus filhos.

Levaria de meu pai,
a vida adentro, três preceitos:

"Aprender com o erros dos outros,
é preferível a aprender com os próprios".

"Faça o que digo, não o que faço" - ironia.

"És responsável por aquele que cativas".

Muitas memórias de ele vivo,
em um jardim florido com minha irmã
ao colo, ambos descabelados...

Peixes, livros, vida e obra.
Flores, pássaros, a vida cobra.

O silêncio lá fora e na alma a ausência
de sentido às brigas que na natureza
das idades aflora, instantes de vida postergada.

Ausência de sentido - remendo e desatino.

[...]

Nenhum comentário: